As Formações do Inconsciente
6 de novembro de 1957
Jacques Lacan



João Rêgo[1]
Recife, fevereiro de 1996

Resumo de leitura


O texto de Lacan tem como objetivo abordar a função do significante no inconsciente . Recomendando a leitura do seu texto 'A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud' (LACAN :1966) e fazendo referência ao trabalho de Freud 'Os Chistes e a sua Relação com o Inconsciente'(FREUD: 1905), chiste este, que ele traduz para o françês como Le trait d'esprit, Lacan define esta via como a melhor porta de entrada para se atingir o objeto do seu seminário: as formações do inconsciente.

Não somente é a melhor introdução, mas eu diria também que é a forma mais brilhante sob a qual o próprio Freud nos indica as relações do inconsciente com o significante e suas técnicas. (LACAN : Veredas No0; p.23 )

Faz, inicialmente, referência ao primeiro ano do seu seminário, o qual consistiu essencialmente, a propósito dos escritos técnicos de Freud (LACAN:1953/54), em introduzir a noção da função do simbólico como forma capaz de dar conta da determinação do sentido. Sentido, no contexto freudiano, associado a razão do sujeito, como Lacan mesmo explica:

Dessa forma, eu lhes lembro, determinação no sentido não sendo nada mais naquela
ocasião que uma definição da razão, eu lhes lembro que essa razão se encontra no
princípio mesmo da possibilidade da análise, e que é bem precisamente porque
alguma coisa foi atada a qualquer coisa de semelhante à palavra, que o discurso
pode desatá-la (LACAN: Veredas No 0;p 24)

Com referência ao seu segundo seminário (LACAN: 1954/55) relembra a insistência repetitiva vindo do inconsciente, esta identificada à estrutura de uma cadeia significante.

Destacamos um parágrafo mais adiante, no qual Lacan faz uma afirmação bastante interessante igualando a análise lingüística à análise (da psicanálise):

Ora, vocês verão, essa análise lingüística mantém a mais estreita relação com o
que nós chamamos análise; elas até se confundem; elas não são, essencialmente,
se as observarmos de perto, outra coisa (LACAN: Veredas No 0;. p 25)

Faz referência, ainda, ao seu terceiro seminário sobre as psicoses (LACAN : 1955/56), onde define o Outro com a sede da palavra. Lembrando um dialogo da personagem Athalie da obra de Racine (?), aborda a relação do significante com o significado no discursos do sujeito 'Não há sujeito verdadeiro, senão aquele que fala em nome da palavra.... Não há outro sujeito senão em referência a esse Outro. (LACAN: Veredas No0; p.26).

No parágrafo que apresentaremos na íntegra, é possível encontrar conceitos fundamentais do pensamento lacaniano, que merecem a nossa atenção:

Do mesmo modo no quarto ano de Seminário eu tenho desejado lhes mostrar que não
há objeto, a não ser metonímico, o objeto do desejo sendo o objeto do desejo do
outro, e o desejo sempre desejo doutra coisa, muito precisamente disso que falta
ao objeto perdido primordialmente, na medida em que Freud no-lo mostra como
sempre a ser reencontrado . Da mesma forma não há sentido, a não ser metafórico,
quando sentido não surge senão da substituição de um significante a um
significante na cadeia simbólica. (LACAN, Veredas No 0; p.27).

Grifamos intencionalmente as palavras objeto, desejo e sentido por identificarmos estas, como palavras chaves para a compreensão deste parágrafo. Creio que é em Roudinesco (Cf. ROUDINESCO: 1988) onde ela afirma ter Lacan interpretado em Freud - utilizando o seu universo teórico: Saussure, Hegel, Heidegger, etc..-, aquilo que Freud não teve condições de desenvolver, quer seja por limitações teóricas, quer seja pelo amplo espectro que sua obra pretendeu atingir. Lacan busca na obra freudiana, e encontra, traços de hipóteses preliminares construídas por Freud à espera de um futuro desvendamento. Neste parágrafo, creio que Lacan apresenta um Freud revivido pela lingüística estrutural de Saussure, esta última, também apropriada de modo particular por Lacan.

Assim, se em Freud o ser é um ser dividido em sua estrutura psíquica - consciente, preconsciente e inconsciente (1a tópica) ou Eu, superego e o Isso (2a tópica) -, Lacan afirma que o objeto do desejo, ou seja aquilo que faz o ser se mover diante da vida (ser desejante) é uma resultante do objeto do desejo de um outro ao qual o sujeito está identificado. E ainda mais, o desejo, agora decomposto e isolado do termo 'objeto do desejo', é sempre o desejo de outra coisa, que tem sua raiz na falta deixada pelo objeto perdido primordialmente. Seria este objeto perdido primordialmente, o desejo da mãe, cuja perda sofrida pela interdição paterna remete o sujeito à instituição do seu ser (ser desejante), e cuja sina será sempre o de tentar reencontrar simbolicamente (ou imaginariamente) este objeto, ou substitutos que o representem psiquicamente?

Lacan em seguida faz a apresentação das fórmulas da estrutura metonímica e metafórica , sobre as quais não nos deteremos agora, devido a termos ainda sobre estas, um conhecimento apenas superficial.

Em seguida ele dar início a apresentação do esquema (ver gráfico 1 adiante) que representa as duas cadeias do discurso do sujeito: a cadeia do discurso e a cadeia do significante - a primeira representando o discurso do indivíduo (aquele que pode ser gravado) e a outra representando o discurso do sujeito do inconsciente. Lacan se detém na forma de como se dá a relação de uma com a outra, enfatizando a predominância do discurso da cadeia do significante na construção do sentido do ser.

Com efeito nós nos colocamos inteiramente sobre o plano do significante.....o
que no significante é esse algo com o que nós, analistas, devemos jogar sem
cessar, pois eu penso que salvo esses que chegam aqui pela primeira vez, vocês
devem ter a lembrar como aquilo se passa no jogo de palavras e no trocadilho.
Por sinal, é precisamente por isso que hoje nós vamos começar a entrar no
sujeito do inconsciente, através do dito espirituoso (trait d'esprit e do chiste
(Witz).(LACAN Veredas No 0;p.29)

Lacan enfatiza a predominância do plano significante (inconsciente) sobre a existência do ser, destacando que a função do analista é interpretar o discurso do sujeito, naquele momento em que a palavra tropeça, escorrega, ou falha. Alí estará se dando uma formação inconsciente clamando por ser revelada em sua verdade radical e subjetiva: a verdade do sujeito do inconsciente.

Aborda agora o discurso corrente do indivíduo, o que Lacan chama do discurso vazio. Vazio em sua capacidade de produzir sentido :

Esta outra linha é pois aquela do discurso corrente, comum, tal como é admitida
no código do discurso, do que eu chamaria o discurso da realidade que nos é
comum. É também o nível onde se produz menos criação de sentido, posto que o
sentido já está de certa forma dado, e que a maior parte do tempo esse discurso
só consiste numa fina mistura do que se chama ideais recebidos e que é
precisamente ao nível desse discurso que se produz o famoso discurso vazio do
qual um certo número de minhas observações sobre a função do parentesco de
linguagem são partes. (LACAN. Veredas No 0; p29)

Assim Lacan é bem claro, o sujeito usa o discurso para se inserir no universo simbólico, este discurso contém as palavras que se usa no dia a dia para se comunicar com os outros, entretanto, subjacente a este, desliza, ou opera a cadeia do significante, se relacionando com o discurso do indivíduo como mostra o esquema do Gráfico 1:. a seguir:





Cadeia significante
Mensagem
Código
Discurso - semantema
Objeto
Eu ( je)

















1. Gráfico da cadeia significante x discurso





No texto que abaixo reproduzimos, temos:

Vocês o vêem bem, pois esse é o discurso concreto do sujeito
individual, daquele que fala e que se faz entender. É esse discurso que se pode
registrar num disco. O outro [2] é o que tudo isso
inclui como possibilidade de decomposição, de reinterpretação, de ressonância,
de efeito metafórico e metonímico.(LACAN, Veredas No0; p.29)

A primeira observação que nos impõe, é o termo usado por Lacan, sujeito individual, para definir o indivíduo como o autor do discurso corrente. Seria verdadeiro afirmar que o discurso da cadeia do significante (o discurso do sujeito do inconsciente) teria relações causais com o universo social em oposição ao sujeito individual? O inconsciente é o social. Se esta afirmação for verdadeira, isto traz conseqüências na análise do discurso da cadeia do significante, ou seja, ali está à verdade do sujeito do inconsciente, que eclode subjetiva e radicalmente transformadora do próprio ser, porém é ainda uma verdade imersa no universo social no qual o sujeito está moldado, mergulhado em sua existência.

Bibliografia


FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905) [Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten (Viena, G.S 9, 1-269 e G.W., 6, 1-285) Trad. Inglês: Jokes and their Relations to the Unconscious (Londres, 1960; Standard Ed., 8) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol.VIII. Rio de Janeiro. IMAGO 1977

LACAN, Jaqcques. A Instância da Letra ou a Razão desde Freud. in Escritos (1966) . Editora Perspectiva. São Paulo.1992.

LACAN, Jacques. As Formações do Inconsciente (6 de novembro de 1957) in Revista Veredas No 0. Ed. Traço Freudiano- Veredas Lacanianas. Recife, 199?.

LACAN, Jacques. O Seminário de Jacques Lacan - Livro 1 Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954)[Le Séminaire de Jacques Lacan. - Livro 1 Les écrits techniques de Freud. Éditions du Seuil. Paris. 1975].Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar, 1979.

LACAN, Jacques O Seminário de Jacques Lacan. Livro II: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955) [Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre II: Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (1954-1955)] Éditions du Seuil. Paris. 1978. Ed. Zahar, São Paulo, 1987
LACAN, Jacques O Seminário de Jacques Lacan. Livro III: As Psicoses (1955-1956) [Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre III: Les psychoses 1955-1956. Éditions du Seuil. Paris. 1981 ]. Ed. Zahar, São Paulo, 1987
ROUDINESCO, Elizabeth. História da Psicanálise na França - A Batalha dos Cem Anos. Volume II: 1925-1988. [Historie de la Psychanalyse en France. 1I (1925-1985) La bataille de cent ans. Éditions du Seuil, Paris. 1986]Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro. 198
[1] João Rego é psicanalista, membro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise.

Web site : http://www.psicanalise.org/
E-mail: jrego@psicanalise.org
Blog : http://www.psi-escritos.blogspot.com/


[2] Aqui Lacan se refere ao discurso da cadeia significante.